25/01/2021
Numa manhã fria, a chuva cobria a janela da ampla sala de cirurgia. Entre aparelhos, monitores e três grandes telas de TV, a equipe cirúrgica preparava-se para retirar um tumor que afetava a glândula suprarrenal esquerda, localizada na profundidade do abdome do paciente.
A maior parte da cirurgia seria feita por laparoscopia, através de pequenas incisões, colocação de cânulas e pinças especiais, com auxílio de uma microcâmera. Essa técnica cirúrgica, como tudo na medicina, levou anos para ser aperfeiçoada, e esse hospital pioneiro costumava receber cirurgiões de todas as partes do mundo ávidos por aprender com seus grandes especialistas. Naquela manhã estava registrado no programa cirúrgico que chefe Roman iria realizar o procedimento.
A cirurgia já havia começado quando dois convidados se dirigiram ao único homem presente na sala de cirurgia e lhe pediram permissão para assistir ao procedimento. Ele era um residente que estava auxiliando a cirurgiã, Dra. Sanziana Roman, Professora da Universidade de São Francisco, Califórnia, e autora de mais de 180 artigos científicos. Percebendo o “engano”, ela educadamente deu as boas vindas aos visitantes e continuou, com sua habilidade reconhecida, mais uma cirurgia exitosa.
Em pouco tempo, sem nada avisar, os visitantes saíram da sala cirúrgica, na qual só havia mulheres – anestesistas, auxiliares, enfermeiras e técnicas – e o sortudo residente aprendeu ainda mais, por não ter que dividir o tempo de perguntas com aqueles “visitantes decepcionados”.
As mulheres hoje são maioria entre os estudantes de medicina em diversos países, incluindo o Brasil, mas o número das que trabalham em especialidades cirúrgicas ainda é menor que o de homens.
O estudo “Demografia Médica no Brasil”, publicado pelo Dr. Mário Scheffer e disponível no site do Conselho Federal de Medicina, demonstra que as mulheres optam mais pela dermatologia, pediatria, endocrinologia, hematologia e clínica médica. Entre as especialidades cirúrgicas as mulheres são a maioria na ginecologia e praticamente empatam em número com os homens na mastologia, cirurgia pediátrica e oftalmologia. Por outro lado, há de 4 a 10 vezes mais homens atuando como cirurgiões gerais, cardíacos, torácicos, neurocirurgiões, ortopedistas e urologistas.
Tive o privilégio de conviver, chefiar e ser chefiado por cirurgiãs, que me ajudaram a ver que "músculos" podem ser substituídos por "cérebro e habilidades".
É crescente, mundo afora, o número de cirurgiãs que assumem a chefia de serviços cirúrgicos, cátedras e presidência de sociedades cirúrgicas. Doutoras, com seus afiados bisturis, conquistam, a todo instante, seu espaço pela competência e resiliência. Unidos poderemos melhorar o sistema de saúde, um dos mais lucrativos negócios mundiais, que, pela frenética luta entre agentes financiadores, hospitais e indústrias está adoecido, exceto em alguns países da Europa.
Assim como competência e respeito não são questões de gênero, saúde não pode ser apenas um negócio.
Alfredo Guarischi