31/12/2020
Ninguém ouviu quando alguém sussurrou “Feliz Ano Novo”. Apenas o alarme dos monitores. E eu pedia mais sangue, mais fios de sutura, compressas, mais sangue … O foco do centro cirúrgico era a nossa estrela de Belém.
Não foi a primeira vez que isso ocorreu. Não há feriados em medicina no maior hospital de emergência do estado.
Lutamos pela vida pois, como Fernando Pessoas (1888-1935), poeta português, escreveu: “A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto”. Nos corredores da emergência não faltam curvas e na escola não se aprende o real significado da perda de um paciente durante uma cirurgia.
José Camargo, gaúcho, cirurgião torácico e escritor, que opera pulmões e escreve com o coração, uma vez me falou que “nossa vida é uma infindável sucessão de perdas. A nossa sobrevivência depende de como conseguimos administrá-las”.
Numa troca de mensagens me presenteou com uma pérola, emprestada do Livro dos Abraços, do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), “… Fernando Silva dirige um hospital infantil … Na véspera do Natal ficou trabalhando até tarde. Já estavam soltando foguetes e começavam os fogos artificiais a iluminar o céu, quando Fernando decidiu ir embora. Em sua casa o esperavam para festejar. Fez uma última visita às enfermarias, quando sentiu que alguns passos o seguiam. Uns passos de algodão: voltou-se e descobriu que uma das crianças andava atrás dele. Na penumbra, o reconheceu. Era um menino que estava só … seu rosto já marcado pela morte e aqueles olhos que pediam desculpa, ou, talvez, pedissem permissão … Fernando se aproximou e o menino o tocou com a mão: Diga a … – sussurrou o menino – Diga a alguém que estou aqui…”.
Na medicina somos como esse menino, nos estreitos corredores sem fim e envoltos em penumbras invisíveis.
Uma vez me ofereci para fazer um plantão no Pronto-Socorro Souza Aguiar para substituir um amigo veterano, Gerson, que queria ficar com sua família naquele 31 de dezembro. Eu havia me divorciado, fragmentando minha família. Longe do meu pequeno filho, Enrico, operar seria o melhor a fazer, sabendo que Gerson estaria fazendo o que eu desejava tanto. Não foi uma troca de plantão, mas um presente a esse amigo. Foram diversas cirurgias, mas uma foi especial: um senhor baleado em que eu precisei fazer uma traqueostomia. Após a cirurgia ele não conseguia falar, mas eu o entendi perfeitamente e liguei para sua esposa para lhe dar boas notícias e um melhor ano, que já começara há muitas horas.
Somos como o Fernando e precisamos vencer as curvas como o outro, o Pessoa, nos ensinou.
Agora, nesse 31 de dezembro, recorro ao bacharel em farmácia, funcionário público e poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que em “Receita de Ano Novo”, disse que “… Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem que fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.
Os anos velhos, por algum tempo, foram novos.
Na boa medicina, nossa paixão e missão, buscamos sempre o próximo ano, pois não precisamos “… fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta … acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver…”.
Teremos diversos próximos anos, buscando a cada um, deixar luz e esperança à todos que buscamos ajudar. Até quando virarmos nossa derradeira curva.
Mais uma estrela no céu.
Alfredo Guarischi