03/08/2020
Nunca um medicamento tão antigo gerou tanta controvérsia. Defensores e detratores lutam diariamente em defesa de suas teses, algumas confundindo política de saúde com fazer política na saúde.
Os jornais repercutiram em primeira página o artigo de 23 de julho do New England Journal of Medicine, mostrando que em pacientes hospitalizados com covid-19 de leve a moderada, o uso de hidroxicloroquina (HCQ), isoladamente ou com azitromicina (AZI), não apresentou melhora do estado clínico em comparação ao tratamento padrão. Esse estudo tem 107 coautores e foi realizado em 55 hospitais brasileiros, sendo que apenas três deles incluíram mais de 40 pacientes e nove selecionaram apenas um paciente. Esse fato indica uma variabilidade importante.
Foram submetidas à randomização 667 pessoas, alocadas entre as três modalidades de tratamento. É preocupante constatar que 21% não tinham o diagnóstico definitivo de covid-19. No grupo-controle, 53 pacientes (23%) fizeram uso de HCQ ou AZI ou de ambas substâncias, uma intervenção não prevista. Nos outros dois grupos houve violação de 7% e 13%. Isso perfaz um total de 98 pacientes (14%) que não receberam o tratamento para o qual foram alocados, tendo o desfecho clínico baseado na “intenção de tratar”. Qual teria sido a conclusão se esses pacientes tivessem sido excluídos da análise?
A evolução pulmonar entre todos os grupos foi semelhante, e as alardeadas alterações cardiológicas e de enzimas hepáticas foram de baixa consequência clínica. Dois pacientes faleceram em todo o estudo, sendo um no grupo-controle.
Os autores, excelentes profissionais, reconheceram as várias limitações do estudo e descreveram isso de forma clara, no penúltimo parágrafo do artigo. Reduzidamente, registraram:
Primeiro, embora o efeito do uso da HCQ ou da AZI não sugira grande diferença entre os grupos, o estudo não pôde excluir tanto um benefício quanto algum dano com o uso dessas substâncias. Segundo, o estudo não foi cego. Terceiro, houve a falta de medicamentos considerados benéficos, que levou a alguns desvios do protocolo. Quarto, pelo frequente uso de HCQ e AZI, as instituições decidiram inscrever no estudo pacientes cuja utilização da medicação fosse limitada a 24 horas anteriores ao início dos sintomas da doença. Quinto, embora o tempo médio entre o início dos sintomas e a randomização tenha sido de sete dias, foram incluídos pacientes até 14 dias após os primeiros sintomas.
Os autores, porém, admitiram a possibilidade de maior eficácia da HCQ em diminuir a replicação viral se utilizada mais cedo no curso da doença. Sexto, esse estudo não esclarece o benefício ou prejuízo no uso de algum medicamento de forma preventiva ou nos primeiros sinais da manifestação da doença.
Apesar da conclusão da pesquisa ter sido que a intervenção não melhorou o resultado, as falhas assinaladas pelos próprios autores podem ter sido relevantes e contribuído para essa ineficácia. Além disso, o artigo deixou claro o equívoco de diversos estudos anteriores que afirmavam haver toxicidade excessiva e generalizada com o uso desses medicamentos.
Esse foi mais um estudo inconclusivo, mas que, diferente de outras publicações estrangeiras, demonstrou o compromisso ético dos autores e hospitais brasileiros, que relataram as diversas falhas do trabalho de forma transparente. A repercussão midiática do artigo, contudo, sugere que parte da mídia foi mal assessorada.
Minha análise visa exclusivamente a defesa da metodologia científica e alertar sobre o perigo das leituras superficiais. Ainda temos um longo caminho para entender como tratar essa virose.
Alfredo Guarischi