22/06/2020
Imaginemos que um grupo de cientistas de grandes universidades resolva gastar 100 mil dólares para avaliar o papel de um medicamento antigo e barato para prevenir uma doença potencialmente fatal. Essa pesquisa é muito menos custosa que outras pesquisas com novas drogas.
Sua estratégia foi realizar um estudo randomizado e duplo-cego, o que significa que nem os cientistas nem os voluntários sabiam o que estes estavam tomando (o remédio a ser testado ou o placebo). Os voluntários deveriam ter sido expostos a alguém doente, por mais de 10 minutos, sem a proteção adequada. Quatro dias após a exposição começava o tratamento experimental ou o placebo, por um total de cinco dias.
Um dos principais patrocinadores da pesquisa tem expertise em internet, e os voluntários foram recrutados principalmente com o uso de divulgação nas mídias sociais. Complicado! Outro fato curioso foi a randomização ser realizada em farmácias, mas os remédios foram enviados pelo correio. Estavam previstos 3 mil participantes para se ter um resultado estatístico significante, porém se satisfizeram com 821 voluntários. Destes, 107 tiveram o diagnóstico da doença baseado basicamente em respostas de e-mails ou contatos telefônicos. Isso é válido?
A idade média dos voluntários foi muito abaixo da faixa de risco, assim como não está claro como saber se os medicamentos foram ingeridos corretamente. Em três meses o estudo estava concluído e rapidamente publicado em 3 de junho deste ano. Nossa!
O resultado foi favorável ao grupo experimental, que teve menos voluntários que adoeceram, e apenas dois pacientes necessitaram de internação, um em cada grupo. Não ocorreram arritmias cardíacas ou mortes. No entanto, a conclusão dos autores foi que o medicamento não demonstrou benefício significativo em impedir a doença. Para piorar a análise dessa “pesquisa frankenstein”, o autor principal numa entrevista reconheceu que 15% das pessoas nos dois braços do estudo nem iniciaram o medicamento, porque estavam assustadas com os falados graves efeitos colaterais, que não ocorreram nessa pesquisa.
Esse artigo foi publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM), que foi cuidadoso em publicar um editorial afirmando que seus resultados são mais provocativos do que definitivos, sugerindo que os potenciais benefícios de prevenção medicamentosa do produto testado ainda precisam ser determinados.
Por que tanta confusão?
Em 25 de maio publiquei um artigo no site do Colégio Brasileiro de Cirurgiões criticando o artigo do The Lancet de 22 de maio de um famoso professor da Harvard. Antes tive o cuidado de lhe escrever solicitando esclarecimentos sobre as inconsistências de seu artigo. Sua resposta foi que foram “ótimas perguntas, mas difíceis de responder”. O artigo foi retirado da revista 12 dias após sua publicação, acompanhado de um constrangedor pedido de desculpas dos autores. No mesmo dia, o NEJM fez o mesmo com outro artigo do mesmo professor da Harvard. Em ambos os casos os editores permaneceram em silêncio.
Isso faz mal para a ciência e dá subsídio para discussões nada científicas.
Em 14 de junho, no New York Times, com o título de “A pandemia reivindica novas vítimas: revistas médicas de prestígio”, a jornalista Roni Rabin, com grande vivência em cobrir temas sobre saúde, termina seu texto com a observação de diversos pesquisadores independentes que “os editores e revisores das revistas sabem quem são os autores dos estudos e isso pode levá-los a uma revisão positiva, permitindo a publicação, mesmo quando os dados são suspeitos”. Isso é muito grave e serve de alerta para a grande mídia.
Acho que está ocorrendo algo estranho no corpo editorial de renomadas revistas científicas, induzindo a avaliações equivocadas nas mídias. Os estudos deixaram de ser duplos-cegos, viraram triplos-cegos, pela cegueira de alguns editores.
Alfredo Guarischi