13/04/2020
O uso de fatos alheios aos problemas centrais é uma história cíclica, e quando a ignorância científica se alia à desfaçatez se produz a tempestade perfeita. Comecemos em junho de 1904, quando o Rio de Janeiro registrou milhares de casos de varíola. Oswaldo Cruz, Ministro da Saúde, propôs a vacinação obrigatória, embora houvesse, desde 1837, essa orientação para crianças.
O livro “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, do historiador José Murilo de Carvalho, conta essa história no contexto da transição do Império para a República até o governo de Rodrigues Alves (1902-1906). O decreto presidencial determinava que apenas os indivíduos vacinados conseguiriam trabalho, matrículas em escolas, etc. Incluía multas aos refratários, além de permitir aos serviços sanitários adentrarem residências para vacinar seus moradores.
Isso foi o estopim para uma revolta que reuniu os antivacinistas, militares e civis monarquistas, positivistas, sindicatos e socialistas. A “Revolta da Vacina” paralisou a capital federal, levando à decretação do estado de sítio. Após centenas de prisões, feridos e dezenas mortos, o presidente desistiu da vacinação obrigatória. Em 1908, quando o Rio sofreu nova e mais violenta epidemia de varíola, o povo aceitou ser vacinado.
A atual história, para a qual ainda não há vacina, decorre de uma pandemia mundial ocasionada por um novo coronavírus. Um “déjà-vu” com sinais trocados. A determinação do Ministério da Saúde restringindo o ir e vir não teve o integral apoio presidencial. Para uns, esse isolamento social ocasionará mais mortes pelas perdas econômicas. Para outros, a perda de vidas é que levará a uma maior perda econômica. No entanto, esses cientistas reconhecem que sem uma economia funcionando não haverá uma sociedade, e por isso defendem que, havendo segurança de que o sistema de saúde não irá colapsar, com consequente mortalidade dantesca, deve haver flexibilização do isolamento.
Essa história, como a anterior, tem uma enorme contaminação política. Envolve um presidente que busca reeleição; partidos políticos que estão, não se conformam de estarem fora do governo; forte descontentamento do povo com as diversas esferas do poder; e o Ministério da Saúde, a comunidade científica e substancial parcela da população entendendo como necessária as duras medidas sanitárias diante do atual cenário de incertezas.
Agora vivemos a “Revolta da falta de Vacina”, que, se existente, mitigaria a incidência e mortalidade dessa virose. Não havendo, o foco deve ser na busca por tratamentos eficazes baseado em pesquisas científicas. Enquanto não tivermos uma resposta razoável é fundamental seguir as medidas sanitárias tradicionais. A flexibilização do isolamento vai ocorrer, mas baseado nos dados epidemiológicos e não por achismos ou alquimias.
Continuará a necessidade de criarmos anticorpos contra nossos problemas crônicos e mais letais, como a ausência de espírito público, a desorganização do sistema de saúde e indústrias farmacêutica e de equipamentos reféns de insumos da China e da Índia.
Também está claro que a medicina jamais abandonará os pacientes.
Alfredo Guarischi