10/06/2019
Numa semana na qual o noticiário sobre medicina foi dominado pelo papel da inteligência artificial, prontuários eletrônicos e medicamentos de altíssimos custos, tive a alegria de participar de mais uma vitória da inteligência natural, protocolos simples e uso racional dos recursos disponíveis, no atendimento de um paciente acidentado ao cair de sua moto.
A alegria começou com o atendimento e transporte eficientes dos bombeiros socorristas ao hospital público de emergência, onde abnegados plantonistas o tiraram da situação crítica. Posteriormente, por desejo familiar, foi transferido para um hospital privado, onde uma outra equipe, igualmente treinada, concluiu o tratamento.
Foi gratificante ver que o sistema de saúde pode funcionar em harmonia, com todos lucrando, principalmente os pais, irmãos, sua esposa apaixonada e um bebê que vem sendo planejado.
Essa história me fez lembrar Dominique Larrey (1766–1842), o Pai da Cirurgia do Trauma. Filho de um sapateiro francês, ele foi um brilhante estudante de medicina, chegando ao cargo de cirurgião-chefe do exército francês. Ciente das vicissitudes dos feridos de guerra, era chamado pela tropa de "La Providence" (‘o Salvador’). Obedecia às regras da guerra, sem esquecer a missão humanitária de médico. Criou regras para a triagem das vítimas, tratando os feridos de acordo com a gravidade, não diferenciando os combatentes inimigos dos seus compatriotas. Também descreveu sua experiência com o tétano, a fisiopatologia da lesão por frio, o controle da hemorragia e a drenagem de coleção de pus e sangue no tórax.
Acompanhou por quase 18 anos Napoleão Bonaparte em mais 60 batalhas, tendo “... a ideia de construir uma carruagem leve, com duas rodas, puxadas por cavalos, para transportar rapidamente os feridos através das montanhas”. Uma futurística “ambulância voadora”.
Durante a batalha de Waterloo, o general inglês Arthur Wellesley, Duque de Wellington, ficou impressionado com uma dessas ambulâncias atuando muito próxima ao exército britânico. Wellington decidiu então suspender o fogo de artilharia para permitir “... tempo ao bravo e leal médico para remover os feridos".
Larrey acabou capturado, mas felizmente foi reconhecido por um jovem cirurgião prussiano, um ex-aluno, que logo implorou ao comandante Gebhard von Blücher para não sentenciá-lo à morte. Por uma incrível coincidência, o filho de Blücher havia sido gravemente ferido numa batalha na Áustria, tendo sido tratado por Larrey. Por tudo isso o Salvador foi autorizado a voltar para a França.
Napoleão demonstrou sua gratidão ao seu cirurgião-chefe afirmando que ele “... foi o mais digno homem e melhor amigo do soldado que eu conheci”.
Larrey continua fazendo discípulos, e, no Brasil, em guerra contínua contra a medicina injusta, felizmente ainda há hospitais que reconhecem a necessidade da autonomia dos médicos que, como Larrey, se respeitam e lutam para tratar todos da mesma forma.
Alfredo Guarischi