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Hamilton, do lado esquerdo do meu peito

26/02/2018

Eu decidi ser médico influenciado pelo primeiro transplante cardíaco realizado por Christian Barnard. Esse inquieto sul-africano, em dezembro de 1967, venceu os mais experientes cirurgiões cardíacos da época.

Os bastidores dessa corrida na qual o conceito de morte, ousadia e bioética mudaram a medicina é dissecado no livro de Donald McRae - “Cada segundo conta”, no qual em 8 de suas 400 páginas, cita Hamilton Naki.

No entanto, a história da dura vida desse jardineiro negro e auxiliar de laboratório de cirurgia experimental, mas portador de grande habilidade cirúrgica, numa África do Sul racista, correu o mundo quando de sua morte. Publicada com grande destaque nos jornais The Economist e no The New York Times, além das revistas médicas The British Journal of Medicine e The Lancet, Naki teria sido quem retirou o coração da doadora, Denise Darvall, para ser implantado no peito de Louis Washkansky. Essa história fantástica foi posteriormente desmentida pelo Groote Schuur Hospital: Naki não participara do transplante nem em outras cirurgias, exceto em seu trabalho com animais. A mesma declaração foi feita por Chris Logan, biografo de Barnard, bem como David Dent, reitor da Faculdade de Cape Town.

Naki aposentou-se com salário de jardineiro em 1991, mas recebeu o título de Médico Honorário pela Universidade de Cape Town em 2003. Incrível!

Uma pessoa certa vez perguntou a Naki quando ele tinha ouvido falar pela primeira vez sobre o transplante, no que ele respondeu: “... através do rádio...” Especulou-se que, em função de sua idade, teria apresentado a versão publicada e “fantasiosa”. Mas Barnard, que sofreu de artrite reumatoide nas mãos por muitos anos, admitiria em entrevista, em 1993, que “se dada oportunidade, o Sr. Naki poderia ter sido melhor cirurgião do que eu”.

É triste que as sombras do racismo façam narrativas de modo distinto. É triste que não se dê a devida importância a um homem por sua cor.

Alivia essa tristeza ouvir a música Imagine, de John Lennon, que fala de um mundo melhor. Mas é na voz de Louis Armstrong, interpretando “What a wonderful world”, escrita no mesmo ano do transplante (“I see trees of green, red roses too / I see them bloom for me and you / And I think to myself what a wonderful world ... ”), que me faz sonhar.

Sempre reflito sobre o significado das flores nos hospitais e dos segredos que envolvem o trabalho dos “jardineiros” da medicina.

O tempo pode criar e destruir mitos, mas Hamilton Naki é um herói desse transplante, nem que seja apenas em meus sonhos.

Alfredo Guarischi

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