Órgão Oficial de Divulgação Científica da
Sociedade Brasileira de VideocirurgiaISSN: 1679-1796
ANO 4 Vol.4 Nº 4 -Out/Dez 2006<< Arquivo PDF >>
Neovagina por Videolaparoscopia na Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser
Neovagina by Videolaparoscopic Approach in the Syndrome of Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser
Gilson Barros da Cunha , João Baptista de Alencastro, Marcela S. Ferreira, Carmen Lucia Nery Alves, Patrícia Maria da Silveira
Estudo realizado no Hospital Materno Infantil de Goiânia ( HMI )
e na Fêmina Maternidade e Hospital
Objetivo: Demonstrar o uso da videolaparoscopia na cirurgia para criação de neovagina com a técnica de Vecchietti, utilizando novo instrumental de tração, mais simples e de fácil manuseio. Relato da Técnica: Tratamento videolaparoscópico de duas pacientes (22 e 24 anos) com Síndrome de Rokitansky, utilizando-se a técnica de Vecchietti modificada pelo uso de um novo instrumento. Um sistema de tração com elástico preso em argolas e a um fio de nylon vindo da vulva, passado extraperitonealmente por meio de agulhas, mantém em tração contínua uma esfera colocada no vestíbulo vulvar para formar o trajeto da futura vagina. Resultados: Com base no princípio da técnica original e utilizando novo instrumento logrou-se, a formação de uma vagina com dez centímetros de profundidade e quatro de diâmetro, liberada para o coito aos 40 dias de pós-operatório. Discussão: Sem os inconvenientes das laparotomias e de outras técnicas por via vaginal, a videolaparoscopia com o novo dispositivo de tração abdominal minimizou as dores. Não foram necessários curativos no pós-operatório por não se utilizar molde com tecido de doação, evitando assim as secreções com odor desagradável. O tempo de permanência hospitalar foi menor e reduziu-se de seis meses para 40 dias o tempo para obtenção de vagina adequada para o coito. Recomenda-se o uso da videolaparoscopia para proceder a colocação desse novo aparelho de tração, o que determinou a brevidade do resultado e simplicidade do manuseio.
Palavras-chave: SÍndrome de Rokitansky, cirurgia laparoscÓpica, tÉcnica de Vecchietti, neovagina
Objetive: Demonstrate the videolaparoscopy use in the surgery for neovagina creation, with Vecchietti's technique using new instrumental of traction, simpler and easy handle. Technique Description: Videolaparoscopic treatment of two patients (22 and 24 years) with Syndrome of Rokitansky, using the Vecchietti tecnique modified for the use of a new instrument. A traction system with arrested elastic bands in rings to the thread of coming nylon from the vulva, passed extraperitoneally by needles, keeps in continuous traction a sphere placed to vulvar vestibule open the passage of the future vagina. Results: With the original technique and use of the new instrument it was aimed, in both patients, the vagina formation with ten centimeters of depth and four centimeters of diameter. Liberating them to intercourse on the 40th postoperative day. Conclusion: Without the inconveniences of the laparotomies and others techniques by vaginal way, the videolaparoscopy with the new device of abdominal traction made a favorably reduction of pains. They had not been necessary dressings in the postoperative one for not using mold with donation tissue, thus preventing the secretions with badly odor. This reduced the hospitalar permanence; and reduced for 40 days the time to obtain appropriate vagina for the intercourse. While with other techniques the intercourse is usually possible after 6 months. For this brevity, with simplicity for handle, it is recommended the use of videolaparoscopy as supporting procedure in this technique together with the new traction equipment.
Key words: Rokitansky's syndrome, laparoscopic surgery, Vecchietti's technique, neovagina.
Cunha G.B., Alencastro J.B., Ferreira M.S., Alves C.L.N., Silveira P.M.,Neovagina por Videolaparoscopia na Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser. Rev bras videocir 2006;4(4):183-188.
Recebido em 31/10/2006
18/03/2007
agenesia vaginal é uma anomalia congênita conhecida na prática clínica como síndrome de Rokitansky, ou também como síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser. Durante o desenvolvimento fetal feminino os ductos de Muller amadurecem para se transformarem em tubas de Falópio, útero, colo e terço superior da vagina. O terço inferior da vagina é derivado do seio urogenital.
Esta agenesia constitui um sério problema fisiológico por justificar a esterilidade e incapacidade para o coito vaginal, fatos freqüentemente associados a distúrbios somáticos e psicossociais representados por depressão, perda da auto-estima e distúrbios na personalidade.
O tratamento cirúrgico da agenesia vaginal pode ser feito utilizando-se de tecido de doação ou tecido local do túnel criado, para que ocorra metaplasia, ou pela expansão e alargamento da membrana ou pseudo-hímen não perfurado, com o tecido já existente em contigüidade ao vestíbulo vulvar. As vaginoplastias por expansão tissular são as que utilizam tecidos de doação para criação do túnel vaginal enquanto as vaginoplastias por tração quando os tecidos próprios da região são moldados sob tração.
Utiliza-se mais freqüentemente o tecido de doação, conforme técnica proposta por Mac Indoe & Bannister2, onde se promove um túnel entre a bexiga e o intestino, retirando-se fina camada de pele para envolver molde colocado no túnel. Variantes desta técnica utilizam a membrana amniótica3 ou porção intestinal4. Estes métodos baseiam-se na ocorrência de metaplasia da recém criada parede vaginal para epitélio próprio deste órgão. Mesmo depois de completada a transformação, faz-se necessária aplicação de moldes que evitem a estenose do canal vaginal. O método de pressão intermitente de Frank5 é uma das formas de garantir a continuidade do processo, e consiste na utilização de molde semelhante a um pênis, colocado no pseudo-hímen retrovestibular duas ou três vezes ao dia, durante 20 dias.
O método de Vecchietti consiste na pressão contínua aplicada na área vaginal por uma esfera de acrílico tracionada desde o abdômen6. A vagina não é construída durante a operação, adquirindo sua forma no pós-operatório, já sem anestesia, utilizando o esforço da própria paciente para tornar o método mais confortável e menos cruento. Originalmente a. colocação deste aparelho foi realizada através da cirurgia convencional laparotômica6. A sua profundidade após as diversas técnicas é de cerca de seis centímetros, variando de mulher para mulher, Mobus V. 1
O objetivo desta publicação foi comunicar e divulgar uma nova forma de realizar uma vaginoplastia por tração com o uso da abordagem videolaparoscópica para criação da neovagina, utilizando um novo instrumental de tração, mais simples e de fácil manuseio que o da técnica original de Vecchietti.
RELATO DOS CASOS
O primeiro caso se refere a paciente F.O.S com 24 anos de idade, internada na clínica ginecológica de hospital público em janeiro de 2006. Cariótipo 46 XX, peso 46Kg e estatura de 154cm. Fenótipo feminino, mamas simétricas pouco desenvolvidas com mamilos salientes e pilificação normodistribuída; ligeira assimetria corporal com uma escoliose de coluna dorso-lombar. Ao exame genital, clitóris normoformado e normoimplantado, meato uretral tópico, sem alterações em grandes e pequenos lábios.
Registrou-se a ausência de canal vaginal, observando-se, no local do possível intróito, uma membrana com aparência de hímen imperfurado. A ecografia pélvica mostrou ausência de útero e presença de ovários normais. O toque retal revelou a presença de tecido reto_vaginal firme e fibroso, além de duas estruturas duras, situadas paramedialmente, sugerindo rudimento de útero. Ao exame ultrassonográfico de abdome superior não se visualizou anormalidade, razão pela qual não se solicitou algum outro exame por imagem.
O segundo caso se refere a paciente P.H., internada em hospital privado em 22 de maio de 2006. Com 22 anos de idade, com o mesmo fenótipo e genótipo descrito em relação à paciente anterior excluindo-se a deformidade de coluna.
As pacientes foram submetidas à suspensão total da dieta, com limpeza e esterilização intestinal, 15 horas antes do ato cirúrgico. Acomodadas na mesa de cirurgia em posição semi-ginecológica, com pernas fletidas e em Trendelemburg. Durante a cirurgia a sonda vesical foi utilizada como ponto de referência da anatomia pélvica e do manuseio.
Feitas as três incisões clássicas para a videolaparoscopia ginecológica com um trocárter umbilical para colocação da ótica e mais dois, um em cada borda lateral do músculo reto-abdominal, para manuseio visceral. Realizado o pneumoperitônio e introduzida a óptica para o inventário da cavidade pélvica, órgãos genitais internos, bexiga e intestino. A inspeção da cavidade peritonial mostrou, na primeira paciente, além da patologia em tratamento, a presença de focos de endometriose em diferentes estágios de evolução no peritônio, entre o reto e a bexiga, sendo feitas biópsias e cauterizações das lesões.
A pele do abdome foi puncionada com bisturi de ponta fina (lâmina 11), preparando a abertura para introdução da agulha de ponta romba condutora de fio. Esta agulha foi idealizada pelo autor e confeccionada com curvatura, espessura e comprimento adequados à este procedimento (Figura-1). Fez-se a introdução da agulha próximo à espinha ilíaca ântero-superior, alcançando extraperitonealmente e superiormente o trajeto do ligamento redondo, finalizando na linha média retro-vesical. No primeiro caso foram percebidos dois rudimentos de útero, localizados lateralmente à linha média, caracterizando o da esquerda como um espessamento de dois centímetros. Ao alcançar o espaço retrovesical na linha média, o fio foi traspassado pelo extremo distal da agulha, por abertura peritonial feita com tesoura sob visão laparoscópica. Uma pinça orientou o trajeto desta agulha para a passagem dos fios de tração de nylon (número zero), bilateralmente (Figura-2).
O procedimento abdominal videolaparoscópico foi interrompido após a abertura do peritônio na linha média, passando-se para o procedimento vaginal. O tempo vaginal consistiu na identificação das estruturas pélvicas, com a ajuda do laparoscópio. O dedo indicador do cirurgião, colocado na direção da pseudomembrana vaginal (no local do hímen) e o dedo médio introduzido no reto, serviram de guia durante o procedimento. Avaliada a espessura do espaço entre estes órgãos, introduz-se a agulha de ponta aguda com orifício carreador de fio sob visão e com auxilio da laparoscopia. Seu extremo distal é utilizado para a apreensão na cavidade peritonial dos fios passados pela outra agulha de ponta romba que são retirados para fora da vulva e fixados na esfera guia vaginal de 2,5cm de diâmetro (Figura-3 e 4).
Retornando-se aos procedimentos abdominais extra-cavitários, tais fios passam pelo instrumento de tração idealizado pelo autor. Este instrumento, em forma de cruz, consiste numa chapa metálica de aço inoxidável, com 3 milímetros de espessura e 2 centímetros de largura, encurvada nas extremidades para não cortar o fio e não machucar a paciente. No centro desta curvatura uma ranhura longitudinal dá orientação ao fio de nylon até que alcance um dispositivo em forma de estribo. Um elástico é fixado a um dos extremos e o fio no outro, de modo que estes dispositivos em forma de estribo sejam estirados pelos elásticos e fixados na metade da distância entre os extremos da chapa, por meio de duas argolas. Esta estratégia possibilita o estiramento gradual dos fios (Figura-5). Ao final do segundo dia após a cirurgia, as próprias pacientes se incumbiram desta mobilização. Em ambos os casos a tração foi mantida durante 13 dias.
O aparelho metálico abdominal foi idealizado estreito, propositalmente, para garantir menor contato com a pele da paciente, e bastante leve para ser cruzado por outra chapa, impedindo que se dobre lateralmente sobre o abdome e perca a tração. É necessário o uso de uma calça cinta protetora para evitar o deslocamento do aparelho no abdome e o rompimento do fio ou a perda de tração. Este cuidado permite que a paciente cuide de seus afazeres diários, sem necessidade de sua imobilização (Figura-6).
Figura 1 - Introdução da agulha curva e romba na extremidade.
Figura 2 - Abertura peritonial feita com tesoura..
Figura 3 - Agulha reta captando os fios na cavidade peritonial.
Figura 4 - Esfera guia vaginal.
Figura 5 - Chapa metálica curva na extremidade.Argola em estribo presa no fio e o elástico.
Figura 6 - Aparelho de tração cruciforme para não dobrar sobre o abdome e o sistema elástico.
RESULTADOS
A primeira paciente manifestou nervosismo e ansiedade no pós-operatório imediato, que foi aliviado com 15mg de benzodiazepínico diário, por dois dias. A segunda ultrapassou esta fase sem queixas.
Em ambas pacientes o dispositivo esférico de tração deixado visível na vulva já não mais o era na avaliação feita no terceiro dia após a cirurgia. Por não ter quem a cuidasse em casa, a primeira paciente recebeu alta no sétimo dia após a cirurgia. A outra recebeu alta no segundo dia de pós-operatório. Em ambas as pacientes, no 13º dia de pós-operatório, se retirou o dispositivo de tração juntamente com a esfera vaginal e em seu lugar foi aplicado um molde que imita um pênis, adquirido em "sex shop" com oito centímetros de comprimento e dois centímetros de largura.
Ao final de sete dias, em ambas as pacientes, a vagina adquiriu o tamanho do molde, que foi substituído por outro de 10 centímetros de comprimento e 3,5 centímetros de diâmetro.
As pacientes foram liberadas para o coito, devidamente orientadas, quando o toque vaginal efetuado permitia a introdução total dos dedos médio e indicador.
A colpocitologia feita antes da cirurgia e após a liberação para o coito mostrou epitélio escamoso vaginal próprio, com reação inflamatória leve em ambos os casos.
DISCUSSÃO
Combinando diversos procedimentos adotados na técnica original, a modificação ressalta a utilização da videolaparoscopia, diante do menor manuseio da paciente, o que diminui consideravelmente o componente álgico e o tempo de recuperação, além dos demais benefícios conhecidos da abordagem videolaparoscópica
A utilização da técnica cirúrgica laparotômica de Vecchietti, substituída pela videolaparoscopia e de um modelo de tração artesanal, manipulável pela própria paciente que aprende a tracionar o dispositivo com facilidade,permite um melhor controle no período pós-operatório. A evolução é realmente fascinante, porque a paciente percebe que a "bola ginecológica" está progredindo em profundidade, até sair do campo visual.
A avaliação dos resultados mostra concordância com os relatados em outras variantes do método de Vecchietti7-8, acrescida da vantagem advinda da simplicidade do aparelho de tração. Com o auxílio da videolaparoscopia, a passagem das agulhas é controlada com segurança, uma vez que as mesmas foram projetadas e construídas com diâmetro e curvatura adequadamente calculados para não lesar estruturas por onde passam. Na ausência de cicatriz laparotômica, com um instrumento de fácil manejo e sendo este aparelho de tração agente no processo, que é indolor, a paciente sente-se segura diante do procedimento. Outras técnicas, que aplicam membrana e outros tecidos de doação, apresentam inconvenientes como dores, secreção com odor desagradável e a necessidade de curativo feito por profissional médico3-9-10. No procedimento ora descrito, a única complicação apresentada foi ansiedade e nervosismo da primeira paciente, controlado com o uso de benzodiazepínico durante dois dias.
As duas mulheres não eram casadas e, quando liberadas para o coito optaram pelo uso de toques diários e de moldes para manutenção do resultado alcançado (profundidade e diâmetro). Ressalta-se que a confiança e auto-estima da paciente interferem no resultado. A proposta cirúrgica visa a formação de uma vagina com dez centímetros de profundidade e quatro centímetros de diâmetro, elástica e indolor. A colaboração da paciente é indispensável, mantendo a calça cinta que fixa o molde devidamente lubrificado.
Tais evidências recomendam o uso da técnica descrita para o tratamento da agenesia vaginal na Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser.
Referências Bibliográficas
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10.Rangaswamy M, Machado NO, Kaur S, Machado L Laparoscopic vaginoplasty: using a sliding peritoneal flap for correction of vaginal agenesis. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 2001;98(2):244-8.
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