Órgão Oficial de Divulgação Científica da
Sociedade Brasileira de Videocirurgia

ISSN: 1679-1796
ANO 2 Vol.2  Nº 2 - Abr/Jun 2004

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Síndrome de Mirizzi: Causa Comum de Conversão da Colecistectomia Laparoscópica

Mirizzi´s Syndrome: Common Cause of Laparoscopic Cholecystectomy Conversion

Eduardo Crema1, Silvana Marques e Silva2 Monique Isabel Silveira Bechara2 Sarah Marques e Silva2 Ricardo Pastore3 Alex Augusto Silva4


Serviço de Cirurgia do Aparelho Digestivo da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - FMTM, Uberaba, Minas Gerais - Brasil



É apresentado o caso de um paciente com icterícia obstrutiva com suspeita diagnóstica no período pré-operatório de Síndrome de Mirizzi (SM). A abordagem cirúrgica inicial foi realizada por via laparoscópica, sendo confirmado o diagnóstico de Síndrome de Mirizzi e classificado como tipo III de Csendes. A conversão cirúrgica foi necessária devido à dificuldade técnica. Na era laparoscópica, surge o questionamento sobre a melhor via de abordagem cirúrgica para o tratamento desta síndrome1. Embora alguns autores não considerem a laparoscopia como primeira escolha devido à icterícia e inflamação aguda, sendo até mesmo entendida por outros uma contra-indicação para a videocirurgia2,3, acreditamos que o procedimento laparoscópico possa ser tentado com segurança e que, em alguns casos, permita o tratamento completo. A conduta recomendável é promover a dissecção por via laparoscópica e convertê-la para via aberta, se as condições locais não forem totalmente apropriadas. Alterações anatômicas, dificuldade de visualização da extremidade distal do hepato-colédoco, impossibilidade da retirada dos cálculos ou de reparo seguro do colédoco são algumas das causas de conversão cirúrgica.

Palavras-chave: SÍNDROME DE MIRIZZI /terapia /cirurgia; COLANGIOGRAFIA /métodos; FÍSTULA BILIAR /terapia; ICTERÍCIA OBSTRUTIVA; COLEDOCOLITÍASE /cirurgia; LAPAROSCOPIA /técnica.

This case refers to a case of a patient with obstructive jaundice, with diagnostic suspicion in the pre operative period of Mirizzi´s Syndrome (MS). The initial surgical approach was carried on by laparoscopic via that confirmed the diagnosis of Mirizzi´s Syndrome, classified as type III of Csendes. The surgical conversion was done due to the technical difficulty. There are doubts and concerns if laparoscopic is the best surgical approach to the treatment of this syndrome.1 Some authors do not consider the laparoscopy as the first choice due to the jaundice and acute inflammation, witch are considered by some a non indication to the minimally invasive treatment.2,3 We believe that the laparoscopic procedure is safe and, in some cases, allows the complete treatment. The best choice is to attempt the dissection of the biliary duct, by laparoscopic via, and to convert to an open surgery if the local conditions are not totally clear. Anatomic alterations, poor visualization of the main duct distal extremity, impossibility of taking out the calculi or the impossibility to make a safe repair of the choledocho are some of these causes of surgical conversion.

Key words: MIRIZZI'S SYNDROME /therapy /surgery; CHOLANGIOGRAPHY /methods; BILIARY FISTULA /therapy; OSBTRUCTIVE JAUNDICE; CHOLEDOCHOLITHIASIS /surgery; LAPAROSCOPY /technique.


CREMA E, SILVA SM, BECHARA MIS, MARQUES SM, PASTORE R, SILVA AA. Síndrome de Mirizzi: Causa Comum de Conversão da Colecistectomia Laparoscópica. Rev bras videocir 2004;2(2):75-78.

Recebido em 05/04/2004

                                                            


Aceito em 26/04/2004




A

síndrome de Mirizzi é uma causa pouco freqüente de obstrução da via biliar4,5,6 tendo sido encontrada em 0,7 a 1,4% das colecistectomias7,8,9 ocorrendo principalmente em mulheres acima dos 40 anos de idade7,10. Descrita em 1948 por P.L. Mirizzi consiste na obstrução extrínseca da via biliar (ducto hepático comum) por um cálculo impactado no ducto cístico ou no infundíbulo da vesícula biliar desencadeando um processo inflamatório com espasmo secundário do colédoco que se manifesta com icterícia obs-trutiva4,7,11. É causa comum de conversão de cirurgia laparoscópica para via aberta.
   Em seu relato inicial, MIRIZZI12 descreveu ducto cístico paralelo ao ducto hepático comum; impactação de um cálculo no ducto cístico ou colo da vesícula biliar; obstrução mecânica do ducto hepático comum pelo cálculo ou secundária à inflamação e presença de icterícia intermitente ou permanente, podendo ocasionar colangite recorrente e, em casos de prolongamento do quadro, cirrose biliar secundária.
   CSENDES e cols.7 classificaram a Síndrome de Mirizzi em quatro tipos:
I) compressão extrínseca do ducto biliar comum por cálculo no colo vesicular ou ducto cístico,
II) fístula colecistobiliar com erosão de diâmetro inferior a 1/3 da circunferência do ducto biliar comum,
III) erosão com diâmetro superior a 2/3 da circunferência do ducto biliar comum, e
IV) destruição completa do ducto biliar comum.
   A sintomatologia, por ser intermitente, pode dificultar o diagnóstico. Os sintomas mais comuns, observados em uma série de 77 casos, incluem: icterícia (96,1%), dor abdominal (88,3%), colúria (87,0%), vômitos (45,4%), emagrecimento (31,1%) e prurido (24,6%).13
   A pesquisa diagnóstica deve incluir ultrassom (US) de abdome, tomografia computa-dorizada de abdome (TC) , colangiografia transparietohepática (CTPH) ou colangiopan-creatografia endoscópica retrógrada (CPER).
   O tratamento cirúrgico é complicado e controverso. A colecistectomia é usualmente resolutiva na ausência de fístula. Caso haja fístula, o tratamento cirúrgico deve incluir o reparo das lesões e, em certos casos, o uso de próteses.

RELATO DO CASO

   Paciente do sexo feminino, branca, 46 anos, com história de icterícia cutaneomucosa flutuante há cinco meses, acompanhada de episódios de colúria, dor em cólica eventual em epigástrio e hipocôndrio direito, sem irradiação e sem fatores de melhora ou piora, emagrecimento não quantificado e febre. Ao exame físico apresentava-se ictérica (3+/4+). O restante do exame físico era normal.
   Os exames laboratoriais na entrada foram: bilirrubina total: 8,47 mg/dl; bilirrubina direta: 7,76 mg/dl; bilirrubina indireta: 0,71 mg/dl; TGO: 72 UI/L; TGP: 47 UI/L; amilase: 24UI/L.
   A ultrassonografia (US) de abdome evidenciou esplenomegalia, dilatação de vias biliares intra-hepáticas, dilatação do hepato-colédoco proximal com a presença de dois cálculos e ausência de dilatação do hepato-colédoco distal. Não foi visualizada a vesícula biliar.
   A endoscopia digestiva alta (EDA) não evidenciou alterações.
   Na tomografia (TC) de abdome verificou-se dilatação do sistema biliar intra-hepático, sem outras alterações.
   A colangiografia transparietohepática (CTPH) mostrou dilatação das vias biliares intra-hepáticas e obstrução ao nível da junção cístico-coledocociana com presença de cálculo no infundíbulo, sendo feita a suspeita diagnóstica de Síndrome de Mirizzi (Figura 1).

Figura 1: Colangiografia transparieto-hepática. Nota-se dilatação da via biliar intra-hepática com obstrução ao nível da junção da vesícula com o colédoco.



   A paciente foi submetida à intervenção cirúrgica através de abordagem laparoscópica inicial, que permitiu a confirmação do diagnóstico. Optou-se pela conversão para laparotomia pelas dificuldades técnicas encontradas. Foram observados resquícios da vesícula biliar previamente perfurada e tamponada, com ausência de ducto cístico, além de erosão de dois centímetros no colédoco - local da implantação da vesícula (classificação III de Csendes).
   Após comprovar o total clareamento da via biliar pela coledocoscopia, foi realizada a correção primária do hepato-colédoco (coledocoplastia) associando uma coledocostomia a Kehr, calibre16.
   O resultado da cultura da bile colhida no per operatório evidenciou crescimento de Estreptococos do grupo D, Enterococos sp, Pseudomonas sp e Citrobacter sp, sendo tratada com antibioticoterapia específica.
    Houve redução dos valores de bilirrubina até níveis normais em 26 dias. A colangiografia realizada pelo dreno de Kehr no 8o dia de pós-operatório evidenciou vias biliares pérvias com boa passagem de contraste para o duodeno e ausência fístulas (Figura 2). O dreno de Kehr foi retirado 21 dias após a cirurgia.

Figura 2: Colangiografia pelo dreno de Kher. Nota-se diminuição de calibre dos ductos intra-hepáticos e boa passagem do contraste pelo hepato-colédoco.


   O controle ambulatorial de seis meses encontra-se sem anormalidades e a cintilografia com DISIDA evidenciou boa passagem do traçador para o duodeno, com bom esvaziamento da via biliar.

DISCUSSÃO

   O tratamento cirúrgico da Síndrome de Mirizzi requer habilidade e cuidado na dissecção da via biliar, realização da colecistectomia, exploração segura das vias biliares e retirada dos cálculos, para evitar qualquer iatrogenia no hepato-colédoco.2
   Na era da cirurgia laparoscópica, surge o questionamento sobre a melhor via de abordagem cirúrgica para o tratamento desta síndrome.12 Ainda que alguns autores não considerem a laparoscopia como primeira escolha devido à icterícia e inflamação aguda, sendo até mesmo consideradas para alguns uma contra-indicação ao tratamento minimamente invasivo.2,3
   Acreditamos que o procedimento laparoscópico seja seguro e que em alguns casos permita o tratamento completo.
   Na Síndrome de Mirizzi tipo I a laparoscopia, juntamente com a colangiografia trans-operatória deve ser usada para o esclarecimento da anatomia. Se o clampeamento do ducto cístico é possível e seguro esta via de abordagem pode ser mantida.
   No caso do diagnóstico pré-operatório da Síndrome de Mirizzi do tipo II (com fístula colecisto-coledocociana) a laparoscopia deve ser empregada com cautela3 por equipes treinadas em cirurgia laparoscópica avançada.
   Ressaltamos que muitas vezes a cirurgia laparoscópica necessita conversão para a complementação do tratamento. Alterações anatômicas, dificuldade de visualização da extremidade distal do hepato-colédoco, impossibilidade de retirada dos cálculos ou de reparo seguro do colédoco são alguma causas de conversão cirúrgica.14,15
   Em nosso serviço de Cirurgia do Aparelho Digestivo da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM), frente a casos de icterícia obstrutiva, emprega-se rotineiramente a CTPH para a avaliação das vias biliares intra e extra-hepáticas.
   A Síndrome de Mirizzi constitui um desafio à laparoscopia tanto para a retirada dos cálculos como para a reconstrução apropriada do hepato-colédoco.
   Concordamos com a literatura que afirma ser a melhor conduta promover a dissecção por via laparoscópica e converter para via aberta se as condições locais não forem totalmente apropriadas.12

CONCLUSÃO

   A Síndrome de Mirizzi, apesar de pouco freqüente, é causa importante de conversão em colecistectomia laparoscópica no tratamento da icterícia obstrutiva.


Referências Bibliográficas

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

EDUARDO CREMA
Marcos Lombardi, 305 - Bairro Santa Maria
Uberaba - Minas Gerais, Brasil
CEP: 38050-170
E-mail: eduardocremafmtm@mednet.com.br 


 

(1) Professor Titular em Cirurgia do Aparelho Digestivo - FMTM.

(2) Acadêmico da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - FMTM.

(3) Residente da Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo - FMTM.

(4) Doutor e Responsável da Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo - FMTM.