Órgão Oficial de Divulgação Científica da
Sociedade Brasileira de Videocirurgia

ISSN: 1679-1796
ANO 1 Vol.1  Nº 4 - Out/Dez 2003

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Videocirurgia na Atresia de Vias Biliares

The Role of Videosurgery in Biliary Atresia

Manoel Carlos Prieto Velhote1, Marcos Marques da Silva2, Wagner de Castro Andrade3, João Gillberto Macksoud4


Instituto da Criança Pedro de Alcântara
Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, Brasil


RESUMO


A atresia de vias biliares é tratada cirurgicamente pela portoenterostomia. Entretanto, em longo prazo, em somente 15% destes pacientes não será necessário um transplante hepático. Um dos fatores de importante aspecto na morbidade e mortalidade relaciona-se com as aderências pós-operatórias. A videocirurgia seria um acesso de grande utilidade se, na atresia de vias biliares, provocasse menor número de adesões peritoniais. Recentemente, iniciou-se uma experiência bem sucedida pela realização da portoenterostomia laparoscópica. O presente relato descreve a experiência inicial dos autores com cinco pacientes submetidos a esse procedimento. Embora a técnica seja de execução trabalhosa e de curva de treinamento longa é perfeitamente factível, porém sua vantagem precisa ser comprovada por séries mais longas, incluindo pacientes submetidos a transplantes.

Palavras-chave: ATRESIA BILIAR/complicações/cirurgia; VIDEOCIRURGIA PEDIÁTRICA; CIRURGIA VIDEOLAPAROSCÓPICA PEDIÁTRICA; CIRURGIA DE KASAI LAPAROSCÓPICA.

VELHOTE MCP, SILVA MM, ANDRADE WC, MACKSOUD JG. Videocirurgia na Atresia de Vias Biliares. Rev bras videocir 2003;1(4):135-139



A

atresia das vias biliares (AVB) é uma doença de etiologia desconhecida que incide em 1 para cada 12 mil nascidos vivos.1 Seus sintomas se iniciam nas primeiras semanas de vida e caracterizam-se por icterícia com predomínio de bilirrubina direta, acolia fecal, colúria e hepatomegalia. A AVB, quando não tratada devidamente, resulta na perda progressiva, pós-natal, da permeabilidade dos ductos biliares, desencadeando processo de fibrose periportal progressiva culminando com cirrose biliar, hipertensão portal com varizes de esôfago, ascite, desnutrição, infecções de repetição e óbito antes dos dois anos de idade.
   A confirmação diagnóstica da doença é realizada essencialmente pela biópsia hepática.2
   O tratamento cirúrgico deve ser realizado sem perda de tempo e preferencialmente até a 10ª semana de vida, período em que a cirrose ainda não está instalada e os resultados são mais favoráveis. A cirurgia consiste na realização da portoenterostomia hepática, descrita por KASAI2 em 1959, que cria uma derivação biliodigestiva entre o porta hepatis e uma alça jejunal em Y-de-Roux. Com a cirurgia obtém-se fluxo biliar em cerca de 60% dos pacientes (dos quais, metade praticamente torna-se anictérico). De todos pacientes operados, 85% necessitarão de transplante hepático por cirrose ou hipertensão portal.
   A cirurgia de KASAI, além de curar 15% ou mais dos pacientes com AVB permite que o transplante hepático seja realizado em crianças com mais de dois anos de idade e com melhores resultados cirúrgicos do que em crianças menores.3 Até agora a laparoscopia na atresia de vias biliares foi utilizada como auxiliar diagnóstico.4
   Um fator importante que contribui para a morbidade e mortalidade do transplante refere-se à intensidade das aderências entre as alças intestinais (entre si), delas com o fígado e entre este último e o diafragma, agravadas pela presença de hipertensão portal. Sabe-se que a videocirurgia abdominal provoca um número muito menor de aderências do que as cirurgias abertas. É possível, pois, que a abordagem da portoenterostomia por acesso videolaparoscópico possa propiciar melhores condições por ocasião do transplante. Este é o motivo para se tentar realizar a cirurgia de Kasai por videocirurgia.
   Em 2002, no Brasil, ESTEVES5 descreveu pela primeira vez uma portoenterostomia por via videocirúrgica não havendo na literatura, até o momento, citações de outros casos a não ser os realizados no Brasil. Atualmente, estes pacientes ainda não foram submetidos ao transplante e, portanto, ainda não se pode afirmar que a cavidade peritonial esteja mais favorável ao transplante. Ao analisar 12 pacientes operados por videocirurgia, quanto ao fluxo biliar e porcentagem de anictéricos, ESTEVES concluiu que os resultados da videocirurgia são comparáveis ao da cirurgia convencional relatados pela literatura.6
   Em 2003, na Argentina, um lactente portador de AVB previamente submetido à cirurgia de KASAI por via videolaparoscópica, foi submetido ao transplante com a cavidade peritonial praticamente livre de aderências - MARTINEZ-FERRO7. Entretanto o transplante foi realizado muito precocemente e, talvez, com um grau de hipertensão portal menor e mais favorável do que em crianças de maior idade e mais tempo de evolução da cirrose.
   Com este objetivo, nos propusemos a iniciar um programa de abordagem da AVB por via laparoscópica visando a familiarização com a abordagem videocirúrgica dessa doença, visando verificar se os resultados (terminada a curva de aprendizado) se surperpõem aos resultados de KASAI a céu aberto e, finalmente, se há vantagens quanto à diminuição da morbidade do transplante com essa abordagem.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

   Em Dezembro de 2002, iniciamos nossa experiência com a abordagem videolaparoscópica da AVB, contando hoje com 6 casos.
   A idade na ocasião do procedimento variou de 45 a 137 dias de vida e o tempo de seguimento pós-operatório foi de 3 a 10 meses.
   O preparo intestinal pré-operatório utilizado consistiu em administração de dimeticona, bisacodil e enteroclisma com solução glicerinada na véspera da cirurgia. O preparo é importante, pois, o colo transverso habitualmente atrapalha a visão e dissecção do porta hepatis.
   Todos os casos tiveram o acesso inicial através de videolaparoscopia, porém somente em 2 casos completamos a portoenterostomia sem laparotomia.
   Utilizou-se Cefoxetina, na dosagem de 100 mg/kg/dia em 3 doses, como antibioticoterapia profilática.
   A passagem do primeiro trocarte foi realizada, após a criação do pneumoperitônio com agulha de Veress, pelo método fechado. Utilizou-se 4 portas de 5 mm, sendo: 1. para óptica - na cicatriz umbilical 2 e 3. para mão direita e esquerda do cirurgião (nos flancos) e 4. um portal para afastamento do colo e duodeno, entre a cicatriz umbilical e o flanco direito.
   Nos próximos casos pretende-se utilizar materiais de 3 mm, curtos, com óptica de 4 mm curta que propiciará melhores condições de trabalho.
   Dispensou-se o afastador do fígado, fazendo-se a suspensão do mesmo com uma variação do método utilizado por ESTEVES, que consiste na criação do pneumoperitônio com baixa pressão e passagem da óptica seguida da fixação percutânea do fígado à parede junto ao gradeado costal. A suspensão hepática foi considerada satisfatória pela avaliação visual quando se obtinha bom campo de trabalho no hilo hepático.
   A dissecção das estruturas do hilo hepático obedeceu a seqüência descrita por KASAI:
- liberação da vesícula rudimentar de seu leito, (Figura 1)
- cauterização da artéria cística,
- secção do remanescente do colédoco, distalmente a área correspondente ao duto cístico,
- dissecção cranial dos remanescentes do duto hepático comum, com cuidadosa dissecção dos ramos da artéria hepática, e
- prosseguimento cranial da dissecção do porta hepatis até a bifurcação da veia porta, inclusive com liberação parcial de sua face posterior neste nível. (Figura 2)


Figura 1 - Vesícula biliar hipoplásica




Figura 2 - Porta Hepatis" evidenciando estruturas hilares dissecadas: ramo diretio da artéria hepática, bifurcação da veia porta, clip metálico de 5 mm na artéria cística e remanescentes das vias biliares tracionados cranialmente por pinça Maryland.



   O calibre e fragilidade dos vasos do hilo torna sua dissecção um procedimento delicado e minucioso, pelo risco de sangramento e grande número de variações anatômicas.
   Após a secção do porta hepatis junto ao fígado e hemostasia por compressão, amplia-se a incisão do umbigo para 2 a 3 cm, identifica-se a primeira alça jejunal e prepara-se uma alça em Y-de-Roux de 30 cm. Nesta é realizada, manualmente e fora da cavidade abdominal, uma anastomose término-lateral jejuno-jejunal em um plano de Prolene 4-0, retornando-se o intestino delgado para a cavidade peritonial.
   Fecha-se parcialmente a incisão umbilical, refaz-se o pneumoperitônio e realiza-se a anastomose do jejuno na região do porta hepatis, com pontos separados de Vicryl 4-0 ou PDS 4-0. (Figura 3)

Figura 3 - Detalhe da portoenterostomia. Fileira de pontos posteriores já terminados, iniciando sutura da borda anterior da alça jejunal pré-cólica com o porta hepatis seccionado.



   A cavidade peritonial não é drenada e a criança realimentada quando se restabelece o trânsito, normalmente em 24 horas.

RESULTADOS

   Dos seis pacientes, somente dois concluíram o procedimento como programado por via laparoscópica (Tabela 1).

Tabela 1 Resumo da casuística

Paciente Idade
(dias)
Peso
(g)
Seguimento
(meses)
Conversão Evolução
KASB 45 4600 3 Não Fezes coradas
EESF 76 4800 10 Não Acolia
VGS 84 3500 4 Porta hepatis rudimentar Fezes coradas
BID 134 5000 4 Lesão portal Óbito-Sepse
JCSS 136 7100 3 Problema técnico Óbito-Sepse
LMS 137 5600 5 Distensão cólica Fezes coradas



   Destes, um apresenta fluxo biliar, embora ainda esteja ictérico apresentado bilirrubina direta igual a 4,1 aos 3 meses de seguimento (sucesso parcial). O outro paciente manteve fezes acólicas e está em preparação para transplante hepático intervivos.
   Dos pacientes convertidos para cirurgia aberta, um teve toda sua dissecção realizada por via laparoscópica convertendo-se para a realização da anastomose no porta hepatis por ter a cirurgia se prolongado muito, embora sem acidentes. A segunda conversão deu-se por não haver estruturas biliares no porta hepatis, adequadas a sua dissecção. Após conversão a anastomose foi realizada entre o jejuno e a área acima da bifurcação da veia porta. A terceira conversão deu-se em função de sangramento de ramo da veia porta de difícil controle. Um quarto paciente foi convertido pela grande distensão do cólon e todos se constituem elementos da curva de aprendizado. A duração do procedimento variou de 4 a 7 horas.
   Todos pacientes foram realimentados no 1º ou 2º dia de pós-operatório, com exceção de um que foi realimentado no 9º dia, por íleo prolongado. Os dois pacientes não convertidos tiveram alta hospitalar no 4º dia de pós-operatório. Os demais, entre o 4º e 11º dias.
   Dois destes pacientes evoluíram sem nenhum fluxo biliar e faleceram com 3 e 4 meses de pós-operatório, por sepse grave. Não houve nenhum óbito ou reoperação precoce.

CONCLUSÕES

   Demonstramos que a cirurgia inicial da AVB é factível por videolaparoscopia. Sendo procedimento avançado, com muitos detalhes, exige realização em centros de referência, por equipe treinada, familiarizada com o método e com curva de aprendizado longa.
   Ainda precisa ser comprovado se, de fato, haverá vantagem quando comparado a cirurgia aberta, em relação às aderências de difícil liberação por ocasião do transplante. Sobre a expectativa deste grande benefício potencial é que nosso trabalho se concentra.
   Resta, também, saber se as concessões realizadas em relação a cirurgia aberta (menor dissecção lateral ao longo dos ramos portais e menor abrangência da derivação biliodigestiva com o porta hepatis) terão conseqüências quanto aos resultados do fluxo biliar e porcentagem de anictéricos.
   Em nossa casuística, não conseguimos ainda reproduzir os bons resultados da série inicial de ESTEVES, visto o curto follow-up deste grupo. Embora, seja cedo para conclusões, deve a nossa série ser encarada como uma experiência inicial, ainda em andamento, em busca de resultados semelhantes.

 


ABSTRACT

Biliary Atresia is a surgically treated disease, through a portoenterostomy. However, in long term, just 15% of these patients will not need a hepatic transplantation. An important aspect related to morbidity and mortality is post operative adhesions. Video surgery could be a good access if, in treating Biliary Atresia, it caused a lesser amount of peritoneal adhesions. Recently, a well succeeded experience with the use of laparoscopic portoenterostomy was started. The present report describes the five initial patients submitted to this procedure. Although the technique demands a lot of surgical work with a long learning curve it is perfectly feasible, nonetheless the advantages must be shown in bigger series, including patients submitted to liver transplantation.

Keywords: BILIARY ATRESIA/complications/surgery; PEDIATRIC VIDEOSURGERY; PEDIATRIC VIDEOLAPAROSCOPY; LAPAROSCOPIC KASAI PROCEDURE.


Agradecimento

   A Ethicon EndoSurgery pelo apoio na elaboração deste trabalho bem como na publicação das ilustrações em cores.

Referências Bibliográficas

1. Extrahepatic biliary atresia. Alagille D. Hepatology 1984;4:7.
2. Atresia das vias biliares. Silva MM, Maksoud JGM. In Maksoud JG, Cirurgia Pediátrica, 2ª edição, Revinter, 2003; p. 904-922.
3. Hadzic N, Davenport M, Tizzard S, Singer J, Howard ER, Mieli-Vergani G. Long-term survival following Kasai portoenterostomy: is chronic liver disease inevitable? J Pediatr Gastroenterol Nutr 2003;37(4):430-3.
4. Neonatal jaundice: the role of laparoscopy. Hay SA, Soliman HE, Sherif HM, Abdelrahman AH, Kabesh AA, Hamza AF. J Pediatr Surg 2000;35(12):1706-9.
5. Laparoscopic Kasai portoenterostomy for biliary atresia. Esteves E, Clemente Neto E, Ottaiano Neto M, Devanir J Jr, Esteves Pereira R. Pediatr Surg Int. 2002;18(8):737-40.
6. Esteves E, Ottaiano M, Ferro MM et al. In: Anais do XXIV Congresso Brasileiro de Cirurgia Pediátrica. Tratamento laparoscópico da atresia de vias biliares. Florianópolis; Nov 2003.
7. Comunicação pessoal. Martinez-Ferro M. 2003.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

MANOEL CARLOS PRIETO VELHOTE
Rua São Firmo, 81
São Paulo, SP
CEP 05454-060
Brasil
e-mail: mvelhote@uol.com.br 


 

(1) Professor Doutor, assistente da Disciplina de Cirurgia Pediátrica FMUSP

(2) Médico assistente da Disciplina de Cirurgia Pediátrica FMUSP

(3) Preceptor da Disciplina de Cirurgia Pediátrica FMUSP

(4) Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Pediátrica FMUSP

 

Recebido em 1/12/2003
Aceito para publicação em 11/12/2003